“Herança nossa que vamos sempre preservar e defender”: eis o compromisso rezado na oração de consagração a Nossa Senhora da Piedade, no alto da Serra da Piedade, magnífica arquitetura divina, diante da imagem veneranda da padroeira de Minas Gerais, no Santuário Basílica, a menor basílica do mundo, a sua casa de clemência e bondade. Uma oração que está na contramão da ousadia escandalosa, desmontada há pouco, a partir de operação policial. As autoridades policiais identificaram que havia tentativa de destombamento da Serra da Piedade para fins minerários. Uma ação criminosa envolvendo interesses meramente pecuniários, contando com a conivência de quem tem a missão cidadã e profissional de defender o patrimônio ambiental, livrando-o das garras da ganância e da mesquinhez. A intenção de se promover afrouxamentos legislativos revela os descompassos ético-morais que estão hospedados no coração da sociedade civil.
A ilusão de poder eliminar o intocável tombamento da Serra da Piedade é, especialmente, uma grave ofensa à memória dos defensores daquele território. Vale lembrar figuras insignes como Monsenhor Domingos Evangelista Pinheiro, o Evangelista da Piedade, padre do clero da Arquidiocese de Belo Horizonte, fundador da Congregação das Irmãs Auxiliares de Nossa Senhora da Piedade, quase um século e meio atrás. Monsenhor Domingos, em um tempo de menor lucidez para as questões relacionadas à preservação da natureza, se singularizou também por oferecer assistência espiritual e cuidados ambientais relevantes. Deixou uma notável herança: verdadeira escola de preservação do patrimônio da Serra da Piedade, com força espiritual que vem do cultivo da devoção mariana. Uma devoção que permite atravessar o tempo, conhecer a história de Antônio da Silva Bracarena, o português, eremita, construtor da pérola barroca que é a Igreja Nossa Senhora do Bonsucesso, em Caeté, e que decide edificar aquela que hoje é, reconhecidamente, a menor basílica do mundo, Ermida da Padroeira de Minas Gerais, no alto da Serra.
A devoção mariana e a grande influência de Monsenhor Domingos acompanharam o jovem sacerdote Carlos Carmelo Vasconcelos Motta, de Bom Jesus do Amparo, também do clero de Belo Horizonte. Assistente no Santuário, durante sete anos das primícias de seu ministério como padre, Carlos Carmelo Vasconcelos Motta foi cardeal arcebispo de São Paulo e de Aparecida, no vale do Paraíba. Mesmo assumindo novas missões, permaneceu reverente ao patrimônio espiritual mariano, histórico e ambiental da Serra da Piedade. Uma reverência que o fez pedir a Frei Rosário Joffily, frade dominicano, para se tornar guardião do Santuário, no alto da Serra. Por 50 anos, Frei Rosário ali viveu, cuidou, promoveu tombamentos e constituiu uma verdadeira escola que formou e forma gerações de aguerridos defensores da Serra - patrimônio intocável. Essas relevantes figuras, e tantas outras, inspiram um coro de lúcidos que exige, fortemente, das autoridades governamentais e judiciárias, pronta reação e providências. Tentativas de destombamento da Serra da Piedade e outras ousadias escandalosas similares não podem se repetir, em lugar algum.
A lógica meramente extrativista e a hegemonia do dinheiro não podem definir os procedimentos ambientais, sob pena de sérios prejuízos, a exemplo do risco da escassez de água. Urgente é, criteriosamente, avaliar licenciamentos a partir de sérios pareceres técnico-científicos, evitando equívocos ou pareceres contaminados por interesses cartoriais e do lucro. Esses interesses facilitam a perpetração de tragédias-crime, já vividas recentemente. É urgente continuar desmontando organizações criminosas e resgatar valores fundamentais à vida social, relacionados à verdade, à liberdade e à justiça. A perda desses valores, de referências morais, traz consequências nefastas e criminosas: leva indivíduos a agirem contra o bem da sociedade, distantes da justiça, desrespeitando o meio ambiente, manipulando a máquina administrativa de governos, instituições e empresas. É muito importante que cidadãos permaneçam vigilantes buscando impedir a atuação de organizações criminosas, responsáveis por inviabilizar uma convivência social equilibrada.
O ordenamento jurídico e a organização governamental, contracenando com o adequado exercício da cidadania, devem caminhar juntos de modo fiel à verdade, buscando respeitá-la e testemunhá-la. É preciso, pois, investir permanentemente em uma prática educativa com força de correção capaz de superar desvios patológicos de caráter. Somente desse modo, será possível evitar que o bem comum torne-se submisso aos interesses econômicos egoístas, ao poder do dinheiro, raiz de todos os males, conforme ensina o apóstolo Paulo, educando seu discípulo Timóteo. A ganância sem limites exige urgente correção, sem contemporizações, para garantir adequado exercício da liberdade. Não se pode abrir mão de um sólido contexto jurídico fiel ao bem comum, capaz de configurar uma ordem social equilibrada. Assim, o ser humano torna-se livre também para recusar o que tem raízes no mal, e viver o compromisso com a justiça como virtude moral cardeal.
Deve ser compromisso de cada pessoa dar a Deus e ao próximo o que lhes é devido. Como ensina a Doutrina Social da Igreja Católica, do ponto de vista subjetivo, a justiça se traduz na atitude determinada pela vontade de reconhecer o outro como pessoa. Quando se atribui ao semelhante apenas valor utilitário, compromete-se a justiça. Desconsiderar os impactos socioambientais do destombamento da Serra da Piedade, além de afronta ao meio ambiente e à memória, é ignorar a sacralidade de cada pessoa, direta ou indiretamente atingida pela exploração predatória dos recursos naturais. Trata-se, pois, de ousadia escandalosa, mais uma na sociedade brasileira, que aponta para a urgência do desmonte de organizações criminosas, com devidas punições e reparos. Assim, também no tratamento dedicado à Serra da Piedade, triunfará a sensibilidade socioambiental que inspira fidelidade ao compromisso expresso na oração de consagração a Nossa Senhora da Piedade: a Serra é “herança nossa que vamos sempre preservar e defender”.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte