O Povo de Israel, muitas vezes, era chamado à atenção porque se distanciava de Deus e se voltava para a prática dos cultos baalistas. Na época, a monarquia se apoiava em uma estrutura social opressora mantida pelo exército e pela religião. Um dos profetas que muito se preocupou com essa infidelidade do Povo de Israel a Deus foi Oseias. Ele percebia no povo uma falta de conhecimento que os prejudicava na busca por Javé – o conhecimento da vontade de Deus, que incluía a retidão, a justiça, o amor ao próximo. Na profecia de Oseias estão contidas as condições exigidas para um retorno sincero ao Senhor. O povo tinha perdido a memória do Deus próximo que caminhava com ele e o libertava, e começava a ter a imagem de um Deus distante e vingativo que precisava ser temido, apaguizado com muitos sacrifícios e oferendas.
Ainda hoje, mesmo recebendo os ensinamentos de Jesus como modelo da nossa práxis cristã, nós cristãos não reconhecemos que há em nossa vida um Deus misericordioso que nos ama com gratuidade. Deus não nos exige nada para nos amar, embora espere de nós também viver o amor gratuitamente. Com o desejo de realizar a vontade de Deus, somos chamados a colaborar com todos: homens, mulheres, jovens, crianças, natureza e todos os seres vivos na edificação de um mundo mais humano. A dificuldade de perceber o Deus-amor é a própria falta de amor que existe no mundo. A violência impera, o egoísmo e individualismo tomam conta do ser humano. Precisamos aprender a amar, a descobrir o Deus-amor que não desiste de nós. Precisamos conhecer melhor Jesus e, com Ele, aprender realizar gestos de solidariedade, de caridade, de fraternidade, de enxergar o outro como irmão, pois todos são filhos de Deus, amados por ele. Também precisamos aprender a viver a alteridade, acolhendo a todos no que somos iguais e respeitando as diferenças.
Na verdade, se atentos ao mistério da fé cristã, ele nos oferece valiosos estímulos e ajudas para cumprirmos mais intensamente a missão para qual somos chamados e, sobretudo, para descobrirmos o pleno significado de tal atividade, assinalando assim o lugar privilegiado da cultura na vocação integral do ser humano. Quando disponibilizamos nossas mãos e fazemos uso dos nossos conhecimentos para ajudar o outro; quando participamos conscientemente na vida social de diversos grupos, realizamos vontade que Deus expressa desde o começo dos tempos.
As grandes narrativas bíblicas nos falam da obra criadora de Deus, tudo feito com muito amor. Deus criou tudo, criou o homem e a mulher e viu que tudo que havia feito era muito bom (Gn 1,31). E a partir de nossas convicções de fé, desenvolvemos motivações para cuidar das coisas criadas por Deus, com o mesmo amor que ele nos criou. Inseridos em um mundo, em constante comunicação uns com os outros, pode-se descobrir várias formas de relação e participação. Para os cristãos, a fé nos permite interpretar o significado e a beleza misteriosa do que acontece. Mas, o que dificulta perceber toda essa beleza existencial de um mundo criado para todos e, ainda, perceber o ser humano criado à imagem e semelhança de Deus, para bem cuidar da Criação, são as imagens distorcidas de Deus que carregamos conosco, no cotidiano da nossa caminhada aqui nesta terra.
As imagens distorcidas de Deus
Várias são as imagens distorcidas de Deus no meio de nós: os pecados, sofrimentos, doenças, desastres e infortúnios da vida são vistos como castigo de Deus que vem como paga por causa das nossas desobediências. Por outro lado, àqueles que se encontram bem, com saúde, e conseguem ser bem sucedidos na vida são vistos como os que foram recompensados por Deus por terem sido “bonzinhos”. Esta visão leva a pensar em um “Deus da troca de favores”. O amor de Deus é visto como uma recompensa. Forte no meio de nós é ainda a falsa imagem do Deus da prosperidade. Na teologia da prosperidade, a pobreza e a miséria são vistas como maldição. Nessa perspectiva, considera-se equivocadamente que o pobre sofre porque é preguiçoso e não trabalha. Outro erro: consdiera-se que a prosperidade se restringe a acumular um amontoado de bens materiais. Os que assim pensam percebem a graça de Deus somente quando tudo está bem. Assim rezam e pedem bênçãos a Deus para conseguir posses.
Sabemos que o sofrimento e as doenças são consequências do modo de vida que levamos, das injustiças praticadas. Nós produzimos os males e isto não é agradável a Deus. Deus não abandona os pobres e sofredores. Aliás, Ele os trata preferencialmente. É através deles que Deus procura construir uma sociedade mais justa. Muitas imagens distorcidas de Deus fazem parte do imaginário do povo. Ainda continuam acreditando no Deus da sorte, da predestinação, da prosperidade, da retribuição. Temos muito que aprender para perceber a gratuidade de Deus. O que fazemos aqui nesse mundo não é para recebermos o amor de Deus. Devemos agir amorosamente porque já temos o amor de Deus. Um amor gratuito, relacioando ao cuidado com tudo o que foi criado.
O amor de Deus ofertado a nós é Dom, e, como todo Dom, precisa ser trabalhado e educado para ser exercido. Jesus, ao se fazer presente no meio de nós, nos revelando o amor de Deus, nos ensina viver esse amor. Ainda temos muito a caminhar para compreender a gratuidade de Deus e deixar-nos envolver por ela, buscar compreender a relação entre Deus e o ser humano, ou seja, o que é próprio de Deus e o que é próprio do homem nas relações. Somos chamados a trabalhar as relações entre nós e Deus – e entre todos nós de forma fraterna – reconstruindo nova mentalidade que nos leve a perceber o Deus da Graça e da Misericórdia.
Aproveitemos esse tempo Quaresma para permitir que o Espírito Santo possa desfazer os nós das nossas vicissitudes, pois é Ele que preenche o universo de potencialidades, permitindo que se possa brotar sempre algo novo. Assim, façamos novas todas as coisas para colher os frutos que está por vir.
Neuza Silveira de Souza
Coordenadora do Secretariado Arquidiocesano Bíblico-Catequético de Belo Horizonte